terça-feira, 28 de novembro de 2006

Um calice de perdizes, por favor

Tinha um ar humilde. Não se enquadrava bem no ambiente que o rodeava, mas parecia pouco interessado nisso. Estava com um ar cansado e as mãos sujas e calças pintalgadas de tinta talvez explicassem o porquê. Pintalgadas era pouco. Estavam mesmo cobertas de tinta. Não devia ser tudo de hoje, até porque haviam cores diferentes. Sorri ao pensar que com o marketing apropriado ainda podiam ser vendidas por serem únicas e feitas à mão. Uma obra de arte, inclusivé. A área comercial desta zona muito "in" deveria ter uma obra em curso e nem ao sábado se podia descansar. Tempo é dinheiro e dinheiro paga urgências.

Chegou ao quiosque onde eu passava o tempo e onde ele resolveu passar a sua pausa. Eram quatro da tarde. Eu pedia um café e um pastel de nata. Ele esperava a sua vez puxando de um cigarro de um maço SG Filtro já um pouco esborrachado. Olhou para mim talvez percebendo que o observava, talvez à espera que me despachasse para poder voltar ao trabalho antes que o patrão desse pela falta dele. Desviei o olhar, observando antes o quiosque onde ambos esperávamos. Eu pelo que pedira, ele pela sua vez.

Verde escuro, como o quiosque tradicional, mas moderno como ditam as leis da Europa. Montras assépticas, refrigeração necessária, higiene quanto baste. Maquina tradicional de café que ocupava uma parede toda e onde tinham ainda uma maquina de cachorros. Sobressaía do resto da decoração. Um público alvo diferente talvez. Uma tentativa de atracção de novos clientes um pouco mais habituados ao plástico. Uma pequena esplanada num passeio de passagem, à beira de uma estrada lenta mas muito concorrida. Ao lado, um jardim arranjado onde crianças brincavam com os pais na relva. Um pouco mais ao fundo uma praça de taxis com pouco movimento que permitia acesas discussões entre os colegas de profissão. Imaginei conversas de politica e futebol. Seja que tópico fosse tudo era atacado, ou defendido quem sabe, com grande fogosidade.

"Quer canela?" Ouvi.
"Quero sim" respondi eu.

O segundo empregado, tendo acabado de servir duas senhoras antes de mim, voltava agora a atenção para o senhor que se seguia. Era o alvo das minhas observações. Esticou-se por detrás do primeiro empregado de uma forma que claramente demonstrava que o quiosque era pequeno demais para dois. A única razão da existência deste segundo empregado seria talvez para o atendimento na esplanada para que o quiosque não ficasse abandonado. Atrás do balcão, um deles estava a mais.

"O senhor?" perguntou o segundo empregado
"Um cálice de perdizes, por favor" respondeu o senhor

Ao ouvir este pedido, pausei. Procurei uma razão para pausar um pouco mais, pois a curiosidade é tramada. Curiosidade matou o gato, diz o ditado em inglês. Não sei se matou ou se foi incriminada, mas curiosidade não me faltava em querer descobrir o que raio era um "cálice de perdizes". Virei-me para trás, para a minha cara metade e perguntei se queria alguma coisa. Enquanto ela pensava eu observava o homem e o empregado. O empregado nem pestanejou. O homem fumava o seu cigarro. Eu de café e pastel de nata nas mãos esperava o resultado do pedido.

"Quero uma água" disse ela.
"Quando puder mais uma água por favor" Pedi eu.
"Fresca ou Natural?" Ripostou ele.
"Natural sem gás" retorqui eu sem pensar.

O segundo empregado colocou o típico copo pequeno com a marcação azul de quantidade correcta no balcão de vidro de uma montra refrigerada e depois esticou-se para chegar a uma garrafa na ultima prateleira. Era curto. Pediu ao primeiro empregado ajuda. Este era mais comprido, mas estava a apanhar uma água da paleta que estava no chão. Fui com alguma pressa à minha mesa pousar o café e o pastel de nata para poder ir buscar a água, sempre olhando para trás para não perder a resposta à minha curiosidade. Voltei.

"É tudo?" questionou ele
"É tudo" afirmei eu, percebendo que só iria ajudar o segundo empregado depois de me servir.

Eu que queria ter uma razão para esperar a resposta, era agora a razão para não haver uma resposta. Paguei, recebi o troco e calmamente o fui arrumando no bolso e carteira prestando nenhuma atenção ao que fazia.

O primeiro empregado virou-se para trás, disse algo que não percebi ao segundo empregado, e esticou-se. Á primeira não vi o que era. Á segunda pareceu-me perceber. Á terceira sorri. Sorri de novo e quase saiu uma gargalhada. Espantoso, pensei eu, esta capacidade de improviso quando a língua não é nossa. Voltei para a minha mesa satisfeito de ter aprendido qualquer coisa hoje.

Era uma garrafa de Whisky Famous Grouse, que para quem não sabe, tem uma perdiz no rótulo.