sexta-feira, 16 de setembro de 2005

Capitulo 1

Acordou estremecida. Um barulho estranho. Um despertador mas não era o dela. Esticou a mão para carregar no botão que lhe permitiria mais 7 minutos de sono. Não encontrou o botão. Abriu os olhos e por breves instantes sentiu-se confusa. A janela não estava no sitio certo, a porta não estava onde era suposto, os armários tinham mudado de lado e o despertador não párava de tocar. Era o despertador no telemóvel, abriu-lhe a tampa, carregou na tecla vermelha e encostou-se novamente na cama. De repente, como um flash fotográfico, reconheceu o quarto de hóspedes da casa dos páis. Como uma cataráta, os eventos do dia anterior passavam diante dos seus ólhos novamente fechados. Sentiu uma dôr no peito. Olhou para o lado num desejo involuntário de ainda o vêr ao seu lado. Não viu. Pensou que queria chorar, mas não o fez. Por algum motivo não foi capaz.

Recordações misturaram-se com sonhos mas era tudo no passado. Não um passado distante mas sem dúvida um passado. Lembrava-se do dia em que o conheceu. Das semanas que se seguiram. Das coisas que tinham feito, dos sítios onde tinham ido. Lembrava-se de como as coisas eram e deixaram de ser. Sem perceber bem porquê. Parecia inevitável. Seria? Lembrou-se do casamento, lembrou-se dos momentos depois. Da viagem que tinham feito. Tentava lembrar-se do momento em que tudo mudou mas não o conseguia apontar. Ele tinha dito que tinha sido aos poucos, como um copo de água que enche gota a gota até transbordar. Tinha transbordado ontem, mas não se lembrava quando tinha começado a encher nem ele lhe tinha dito. Era mais fácil acreditar que ele tinha outra, mas no fundo sabia que não. Tinham-se apenas afastado, ontem, por completo.

A luz entrava de pela janela mál fechada recordando-a que havia uma vida lá fora, fora deste quarto estranho, fora da sua cabeça. A urgência do momento entrou de rompante nos seus pensamentos e fe-la sentar-se na cama. Olhou à volta. O silêncio invadia os cantos quase escuros do quarto. Nos seus pensamentos não havia silêncio. Já pensava no trabalho e no que tinha para fazer hoje. Já delineava a agenda diária antes de sequer se ter destapado e posto os pês no soalho frio para procurar as suas pantufas cuidadosamente desarrumadas ao lado da cama. Levantou-se, pegou no necessaire ainda dentro de uma mala semi-aberta e dirigiu-se para a casa de banho.

Na casa de banho fez o ritual que sempre fazia. São os rituais da vida que nos dão os alicerces para vivermos pensou ela ainda semi ensonada. Acontecesse o que acontecesse teria sempre de tomar banho, vestir-se, arranjar-se e preparar-se para o que o mundo lhe tinha para dár ou vender. Saiu da casa de banho já mais acordada e ainda a delinear as actividades para o dia quando foi interrompida por um pensamento habitual mas violento. O que é que vou vestir? Após desarruamr meia mala, vestiu-se cuidadosamente olhando-se no espelho do armário velho naquele quarto de hóspedes. Virou-se de lado e olhou-se novamente ao espelho. Estava cansada, mas disfarçava. Estava pronta para o que o dia lhe atirasse, ou pelo menos mais pronta depois do que o dia lhe tinha atirado ontem.

Na outra ponta da casa já ouvia os pais. Estariam com certeza na cozinha a preparar-lhe um pequeno almoço como só os pais sabem preparar para uma filha desgostósa. Apetecia-lhe esse pequeno almoço, mas não lhe apetecia explicar o que se tinha passado aos seus pais. Queria que eles não perguntassem nada como lhes tinha pedido no dia anterior quando tinha chegado ao final da tarde. Ontem tinha chorado. Hoje não lhe apetecia. Sabia que os pais não lhe iriam fazer perguntas esperando pacientemente por uma explicação, mas os olhos não mentem. Sentiria a dor nos ólhos dos pais ao verem a filha separada, ao acharem que ela estava a sofrer. Ela própria não sabia o que sentir, por um lado tinha pena, mas não se achava a sofrer.

Respirou fundo, abriu a porta do quarto sabendo que o primeiro passo para fora daquele quarto seria como um primeiro passo numa vida nova. Seria uma nova fase da sua vida igual em quase todos os sentidos menos um. Um pequeno grande detalhe, mais que um detalhe. Era mais como uma moldura. Agora era como um quadro sem moldura. Caminhou em direcção à cozinha, sorriu para os pais que a olhavam com um ar preocupado mas tentando disfarçar. Como se fosse normal que a filha acordasse todos os dias lá em casa. Bebeu o sumo de laranja fresco que lhe tinham espremido, fingiu pressa, disfarçou dizendo que estava atrasada deu um beijo a cada um e despediu-se enquanto já abria a porta para sair. Fechou a porta e limpou uma lagrima que saiu enquanto esperava pelo elevador.

Entrou no carro ligou-o. Olhou-se ao espelho ajeitou o cabelo e colocou os óculos escuros. Estava um bonito dia de sol. Abriu a janela para respirar o ar fresco. Resolveu fazer o caminho mais longo. Não era por mais 10 minutos que a empresa fecharia e dava-lhe um pouco mais de tempo para pensar na vida. Na nova vida. Tirou o carro do estacionamento e arrancou em direcção à sua nova velha vida.

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