terça-feira, 13 de setembro de 2005

a espingarda

Aos meus 10 ou 11 ou 12 anos recebi uma pressão de ar como presente de um Sr. Grego que foi brevemente meu cunhado. Aos 10 ou 11 ou 12 não sabia o que era um cunhado, mas o presente colocou-o ali ao lado dos tios que estavam "na frança" e o meu padrinho e madrinha que via de vez em quando mas que tinham sempre um presente para me dar. Desde que me lembro tinha uma fascinação por armas que um dia espero descobrir se era normal ou não através dos meus próprios filhos. Tudo o que tivesse a ver com pistolas, espingardas, facas era coleccionado religiosamente. Livros, catálogos, fotografias etc etc. Recordo-me de uma ida a uma daquelas lojas de brinquedos de 3 andares em Nova Iorque e os meus pais me terem dito "Passeia à vontade e escolhe um brinquedo qualquer que te oferecemos". Depois de cerca de 2 horas a correr a loja a pente fino, e os meus pais terem ido passear para outro lado qualquer, lá me encontrei com eles à hora combinada com o meu futuro presente na mão... uma espingarda de ferro e plástico. Não me recordo bem como, mas as regras da escolha foram alteradas assim que me viram de espingarda em punho. Convenceram-me a trocar... não podia escolher pistolas nem espingardas. Troquei a arma por um conjunto de truques de magia dentro de uma cartola. Era a segunda melhor coisa: magia.

A pressão de ar foi a minha primeira arma "verdadeira". As idas à vivenda da Avó Maria tiveram novo significado. Passava o lanche a pensar na espingarda que tinha ficado à entrada da casa. Comia à pressa e respondia a todas as perguntas que me faziam. Assim que havia uma pausa na conversa ou as atenções divagavam de mim para um outro assunto qualquer, lá pedia se podia ir brincar. Passei fins de semana em casa da Avó Maria aos tiros a soldados imaginários. Fazia de sniper antes de sequer saber o que era um sniper. Venci guerras sozinho e não importava que algumas vezes nem tivesse chumbinhos para colocar na arma. A arma tinha levado uma mola de uma Diana modelo de competição. Apesar de não saber bem o que isso queria dizer, soava-me importante e contava-o a todos os amigos. Tinham-me dito que disparar a seco fazia mal à mola e por isso evitava-o, mas a imaginação de uma criança de 10 ou 11 ou 12 anos não precisa de barulho e muito menos de chumbinhos a saírem de um cano para se divertir com uma espingarda.

Após alguma educação e demonstrações feitas pelo meu pai e ele se ter certificado que eu sabia mezer na arma e que não ía fazer nenhuma parvoice lá me deu a caixa de chumbos para a mão e deixou-me a sós com a minha espingarda.

Em pouco tempo já era um atirador bastante certeiro. Primeiro a alvos de papel que tinham sido presenteados juntamente com a arma. Quando os alvos de papel acabaram, descobri o gozo da destruição sonora das latas e das garrafas que só se partiam a partir da quinta chumbada certeira. Depressa descobri que as garrafas só eram boa ideia se depois não tivesse que limpar os restos mortais. As pinhas no topo dos pinheiros também faziam bons alvos e se o tiro fosse suficientemente certeiro e a estação fosse certa, caía a pinha ao chão com uns deliciosos pinhões para comer! A pouco e pouco a arma foi sendo apontada a cada vez mais coisas. Era inevitável a minha primeira caçada, que foi também a ultima. Jurei nunca mais dar um tiro num bicho ao vê-lo cair da árvore onde estava, bater no chão e continuar a tentar bater as asas para tentar fugir. Quase chorei. O pássaro sangrava no chão e estava em evidente sofrimento. Eu era responsável pelo sofrimento do bicho e por isso tinha de acabar com esse sofrimento. Um segundo tiro certeiro tirou-lhe a vida, mas tirou-lhe o sofrimento também. Quase chorei novamente. Nesse dia guardei a arma e não disparei mais.

Num verão que arma me acompanhou para o Algarve, foi a única vez que me tiraram a arma como castigo por ter dado um tiro na lâmpada do quintal da vizinha. O mais giro desta história é que não fui eu a dar o tiro mas assumi as culpas porque o amigo que tinha dado o tiro teve medo de assumir a responsabilidade perante os meus pais. Disse que tinha sido eu e que pensava que não ia acertar. Uma clara mentira e os meus pais sabiam-no. A arma foi devolvida dias depois com a promessa que não atiraríamos a nada para além dos muros da casa.

Na varanda do meu sétimo andar fazia tiro ao alvo a uma distancia de 2 ou 3 metros. Claro que tinha sido proibido de disparar a arma pela janela, mas sem os pais em casa era também inevitável que eventualmente o fizesse. Olhando hoje para trás vejo a irresponsabilidade do que fazia, mas tinha razões para acreditar plenamente na minha apontaria. Era um atirador exímio. Irresponsável talvez, mas exímio. Nos seus anos mais tardios a espingarda ganhou uma mira telescópica oferecida pelos meus tios que tinham vindo "da França". A mira deu novo interesse à pressão de ár, mas se sem mira eu já era certeiro, então com mira era imparável. Acertava em tudo a que atirava. Senão à primeira à segunda era de certeza. Eram garrafas, latas, candeeiros, pés dos amigos que chegavam da escola e até uma vez o cu dum amigo que se preparava para entrar na piscina a uma distancia superior a 100 metros! Rapidamente perdeu a graça e tirei a mira para voltar a ter alguma sensação de perícia. Com mira telescópica era muito fácil.

A espingarda acompanhou a minha adolescência toda. Não sei se lhe posso chamar de brinquedo pois nem eu a via dessa forma. Tive sorte, talvez, em nunca ter aleijado ninguém nem me ter aleijado a mim próprio, a não ser anos mais tarde em que numa limpeza habitual enfiei um chumbo no dedo. As limpezas eram um ritual cuidado em que desmontava a espingarda peça a peça e com um óleo especial a lubrificava peça a peça. Naquela manhã carreguei a arma com o que pensava ser ar apenas para tirar o excesso de óleo dentro do cano mas juntamente com o óleo saiu um chumbo que se alojou na base do meu polegar. O chumbo já la estava dentro e eu não o vi. Erro. Podia ter sido mais chato. Passei 8 horas no S. Francisco Xavier à espera de uma pequena cirurgia para me tirar o chumbo. Ainda o guardei por uns anos mas depois perdi-o. A espingarda ainda a tenho e nunca me hei-de desfazer dela.

1 comentário:

Anónimo disse...

eu tenho 2 e são o meu pasatempo favorito:) bela história